Palavreado
Recebi um grande presente de Natal: a publicação do jogo Palavreado, que criei junto com meu amigo e xará Luiz Cláudio da Mata, da Orgutal, com belas ilustrações de Michely Klopper.
Palavreado foi desenvolvido a pedido do Ministério das Relações Exteriores, como parte dos projetos culturais ligados ao Bicentenário da Independência. A proposta era criar um jogo que incentivasse o uso da nossa língua como língua de herança – ou seja, o seu uso por famílias de brasileiros que emigram para países onde outros idiomas são majoritários, e nos quais o uso do Português Brasileiro fica restrito ao ambiente familiar.
Mesmo tendo este público-alvo em vista, claro que nada impede que o jogo seja usado em outros contextos.
Anotei, a seguir, algumas das considerações que orientaram o processo de criação do jogo.
Print-and-play
Nossa proposta original recomendou que o jogo fosse print-and-play, ou seja, que pudesse ser publicado como um documento digital, para ser impresso por qualquer pessoa.
Por isso, a arte foi criada de forma a poder ser impressa mesmo em impressoras preto-e-branco.
A base
Decidimos que a base do jogo seria um baralho tradicional (o baralho francês, de 4 naipes com 13 cartas). Isso traria duas vantagens: a familiaridade e a multifuncionalidade – as mesmas cartas podem ser usadas em outros jogos, como Buraco, Truco, Rouba-montinho…
A língua
Quando pensamos no tema do jogo, percebemos que não era tão simples como dizer “é um jogo sobre a língua portuguesa”. Colocamos imediatamente a questão: qual língua portuguesa?
Primeira resposta: é o Português Brasileiro (PB), não o Europeu ou outra variante. Mas isso não era suficiente; ainda tivemos que pensar no tema em função do objetivo do jogo: fomentar o uso do PB como língua de herança.
Ora, para incentivar o uso da língua, percebemos imediatamente que o jogo não podia adotar uma postura prescritiva. Não podíamos privilegiar a chamada “norma culta”, nem sermos orientados por ela. Nem poderíamos privilegiar um inexistente “padrão” da língua.
É da natureza do jogo – qualquer jogo – ser algo ao alcance de qualquer pessoa; no caso especifico do Palavreado, a própria ideia de fazê-lo como print-and-play reforçava isso. O jogo teria que ser inclusivo e não exclusivo; teria que estar aberto a variações linguísticas de todas as naturezas – até porque não poderíamos saber, a priori, qual seria a língua praticada no ambiente familiar dos jogadores.
Jogadores
Nosso público-alvo são famílias no exterior, nas quais haja pais ou avós falantes de PB, e crianças ou jovens em um ambiente de outras línguas.
Ora, a menor família possível é composta por duas pessoas – por exemplo, uma mãe e um filho. Também aqui, o jogo precisava ser inclusivo: as regras precisavam contemplar partidas com apenas duas pessoas. Vale notar que, justamente, famílias de tamanho reduzido tendem a precisar de mais apoio para a prática do PB.
O jogo
Partindo de todas estas restrições, desenvolvemos um jogo cooperativo, orientado para a criação de narrativas.
Cada uma das cartas do jogo traz um substantivo ou um verbo, e a ilustração correspondente. Os naipes são temas culturais brasileiros – assim, além da língua, o jogo também ajuda a manter vivas as tradições que ele ilustra. As palavras escolhidas são ligadas a estas tradições, mas também a temas do cotidiano, para aproveitar a sua familiaridade, e, mais uma vez, incentivar o uso da língua.
À medida que as cartas vão sendo colocadas sobre a mesa, os jogadores precisam criar histórias que usem todas as cartas abertas.
Testes
A parte mais importante do processo de criação de um jogo não é o desenvolvimento das ideias, e sim os testes (playtests). O designer começa por um jogo ruim, e vai testando e modificando o jogo ruim até que ele fica bom…
Não foi diferente no caso do Palavreado. Realizamos testes com pessoas dos 7 aos 83 anos, com variados graus de experiência com jogos.
De forma geral. as crianças tiveram grande facilidade em usar as palavras das cartas para criar histórias. É verdade que eram narrativas adequadas a esta faixa etária – o que quer dizer que não eram “boas” narrativas, o que incomodou alguns dos adultos.
Mas o objetivo do jogo não é criar boas narrativas, e sim incentivar o uso da língua portuguesa.
O resultado
Palavreado é, ao mesmo tempo, mais e menos que um jogo. Menos, porque tem regras bastante frouxas, e nem mesmo precisa de uma condição de vitória. Isso é intencional, e leva diretamente ao que faz dele mais que um jogo.
Nosso objetivo era proporcionar um meio para incentivar o uso da nossa língua, e para ajudar a integrar famílias brasileiras no exterior. As palavras-chave, aqui, são “proporcionar” e “ajudar”: assim como não estamos mandando que a língua seja usada desta ou daquela maneira “certa”, não estamos mandando que Palavreado seja usado conforme regras rígidas.
Estamos, propositalmente, usando a plasticidade e flexibilidade dos jogos, para acolher a imensa diversidade das nossas famílias – da nossa família! Cada um saberá como usar melhor este presente.